O trabalho recente de João Marçal apresenta-nos uma superfície de abstracção, no entanto estas composições constituem exercícios de memória que com frequência fazem referência a situações simples do quotidiano. Estas situações, que muitas vezes se traduzem ou se inscrevem através de imagens, vão ecoando, insistindo, ampliando a sua importância, tecendo uma complexa teia de referências e sinapses. A certa altura, estas ideias transformam-se em pequenas obsessões que exigem ser resolvidas de alguma forma. Segundo o artista, normalmente, este processo arrasta-se durante muito tempo, por vezes anos. Por outro lado, com a passagem do tempo, coisas há que seguem um caminho inverso, acabando por perder importância, nunca sendo concretizadas. Goin’ Blind, é simultaneamente o título da instalação e da exposição que o artista apresentará no Parkour. A nova série de pinturas que constitui a instalação, é representativa do método de trabalho de João Marçal. Mais uma vez, parte de uma trivialidade que ganha autonomia, que se emancipa, dando origem, aqui, a uma sequência de vinte e quatro pinturas abstractas sobre papel, pensadas especificamente para aquele espaço. O título segue uma estratégia já usada por Marçal noutras exposições, tomando emprestado o nome de uma música que durante um longo período de tempo persiste na sua cabeça, “Goin’ Blind” (1993) de Melvins. Estes trabalhos constroem-se a partir do fascínio pela possibilidade de avançar em caminhos diametralmente opostos: dentro do território do formalismo abstracto e, simultaneamente, no sentido de uma referência concreta. Os pedaços de cartão colorido que dão origem a esta série, constituem uma espécie de acidentes gráficos, paralelos ao processo industrial de concepção de uma embalagem, conservando em si um princípio de aleatoriedade. Esta sequência, em que uma forma geométrica se repete em diferentes combinações de cores, remete-nos para uma marcação da passagem do tempo. A forma replica-se e modifica-se, criando um léxico que por vezes é interrompido, aniquilando a sua lógica aparentemente coerente. “Este trabalho começou há cerca de três anos (2010/11). Costumava fumar sempre no mesmo sítio, a varanda nas traseiras da minha casa, na Rua Miguel Bombarda. Todas a vezes que fumava um cigarro (a acção repetia-se naturalmente), olhava para um pequeno pedaço de cartão pousado do outro lado varanda, sobre um telhado. Durante muito tempo, encontrei-me todos os dias com aquele fragmento, do qual desconhecia por completo a origem. Era azul com uma mancha branca e um círculo amarelo, e por isso, semelhava-se a um pequeno céu inscrito numa forma geométrica intrigante, que parecia a um laço ou a uma espécie de ampulheta estilizada. Um dia decidi apanhar este pedaço de cartão, com a ajuda de uma pau de vassoura e fixei-o no painel de cortiça do meu escritório. A minha ideia inicial era poder fazer uma shaped-canvas que tentasse reproduzir a forma daquele pedaço de cartão, o que iria resultar numa espécie de representação do céu completamente absurda. Meses mais tarde, a minha namorada acabou por descobrir acidentalmente a origem daquela forma, que na verdade, era um fragmento da parte inferior da cartonagem de um pack de iogurtes líquidos. A partir daí comecei a “vandalizar” embalagens de iogurtes no supermercado e a coleccionar estes pedaços de cartão sem nenhum objectivo claro, até ao dia em que alinhei alguns destes elementos lado a lado, em cima de uma mesa. A sequência remetia naturalmente para os conceitos de repetição e diferença, que me interessam particularmente e que são, de certa forma, intrínsecos ao meu trabalho. A possibilidade de criar um paralelismo com algumas séries de pinturas sobre a alumínio de Blinky Palermo (nomeadamente com séries como: Times of the Day, Coney Island ou To the People of New York City), terá sido também um factor determinante, talvez o motivo que definitivamente me faria avançar e concretizar a série Goin’ Blind.” ING EN João Marçal's recent work presents an abstract surface, nevertheless, these compositions constitute memory exercises that frequently refer to simple actions and experiences from daily life. These situations are often translated or inscribed through images, insisting and reverberating, growing up its importance, while building a complex net of references and synapses. At a certain point, these ideas become obsessions that somehow demand to be solved. In the artist words, usually, this process takes a long time, sometimes years. On the other hand, there are ideas that follow the opposite course, losing relevance and never getting the chance to be executed. Goin’ Blind, is simultaneously the title of the installation and the exhibition that João Marçal presents at Parkour. The new series of paintings that constitute the installation are representative of his usual method of work. Once again, it begins with a triviality that gets emancipated and becomes autonomous to gain the shape of a sequence of twenty-four paintings on paper, developed specifically for that space. The title follows a strategy already used by Marçal in other exhibitions, borrowing the name of a song from Melvins, that during a long time persisted in his head, “Goin’ Blind” (1993). These works come from a fascination of the possibility of taking completely different paths: in the territory of abstract formalism and, simultaneously, in the direction of concrete references. The coloured cardboard pieces that originate this series constitute a sort of graphic accidents, a residual product of the industrial process of making a package, concentrating in it a random dimension. This sequence, in which a geometric shape is repeated through different colour combinations, evokes the possibility of measuring the time, as it clearly imposes a rhythm. The shape repeats itself, creating a lexicon that sometimes is interrupted, annihilating its apparent cohesive logic. “This work started about three years ago (2010/11). I used to smoke always in the same place, at the balcony at the back of my house, on Miguel Bombarda Street. Every time I went smoking I would stare at a small cardboard piece lying down on the roof in front of the balcony. For a long time, I would meet that element which origin I ignored, but really intrigued me. It was blue with a white brushstroke and a yellow circle, resembling the sky, confined to the intriguing geometric shape, which looked like a bow tie or a stylised hourglass. One day I decided to pick up that cardboard piece, using the wood broomstick and pinned it against cork board of my office. My original idea was to make a shaped-canvas reproducing that element, which would result into a strange representation of the sky. Months later, my girlfriend found out by chance that the small piece of cardboard was part of a yoghurt package. From then on, I started to collect those colourful pieces, ripping them off the packages, at the supermarket. By then I didn’t knew yet what I was going to do with them. When finally I put the pieces together on the table, it started to become clear that I would have to paint them. The sequence they compose, evokes easily concepts as repetition and difference that interest me and constantly appear beneath my work. The possibility of creating a parallel with some of Blinky Palermo's paintings (specially the series: 'Times of the Day, Coney Island' or 'To the People of New York City'), also increased my interest, becoming the decisive factor to go for it and producing the installation Goin’ Blind.